domingo, 6 de setembro de 2009

Mais figuras do museu: lavando louça com Maria

O Rio de Janeiro continua lindo...e creio que sempre continuará assim...pois ano a ano continua despertando nas pessoas uma sensação de felicidade única.


Quem quer só trabalhar e fazer dinheiro sonha com São Paulo, e entendam, que eu nada tenho contra a Paulicéia Desvairada, terra onde nasci e que eu também adoro, mas quem além de tudo isso ainda acha que a felicidade pode está entre um chope e outro no botequim “pé sujo” da esquina vai para o Rio de Janeiro.


Exatamente por constar no ideario popular como lugar de oportunidades (apesar das estatísticas mostrarem o contrário) o Rio é colocado como um dos “Eldorado” do país. A Cidade Maravilhosa ainda atrai uma multidão para lá viver e sobreviver, que junto com os “Cariocas da Gema” formam um todo indescritivelmente interessante, cheio de figuras merecedoras de constar do meu “Museu de Gente”.


E nessa deliciosa confusão de figuras humanas incríveis você pode se deparar com encaixes perfeitos nas esquinas mais inusitadas, como Maria e Seu Milton...que sequer se conhecem, mas que certamente mereceriam algumas horas num botequim, numa lanchonete ou num ponto de ônibus para conversarem...


Maria, que poderia se chamar Josefa, Sebastiana, Raimunda, Das Dores é mais uma das tantas nordestinas residentes no Rio de Janeiro, que confirmam as estatísticas do quando é difícil a vida das mulheres pobres do nosso País.


Ainda bem que Maria hoje está bem, à vista dela, e isso é o que verdadeiramente importa. Ela está muitíssimo bem, e em meio aos gringos, sem falar uma palavra em inglês ou espanhol, ela se comunica como ninguém, servindo o café da manhã e a fazendo a limpeza do hostal onde me hospedei, sempre com um sorriso no rosto, que não sei se é uma inata simpatia ou o jeito que ela criou para se comunicar em inglês, espanhol, japonês, hebraico....afinal carisma é uma linguagem universal que conecta todos os seres humanos, dignos de serem chamados de humanos.


Pois bem, Maria é mais uma Maria, filha e neta de outra Maria, e também mãe de outras Marias que também poderiam ser Josefas, Sebastianas, Raimundas ou qualquer outro nome comum no interior do nordeste.


Sua mãe teve uma "ruma" de filhos, criados feito “rama de batata”, estudou apenas até a 4ª série, pois o sustento que o pai trazia para casa cortando lenha para vender mal dava para comprar o pão de todo dia...na verdade não dava....daí porque alguns irmãos de Maria, bem como uma filha dela própria foram distribuídos por sua mãe a quem pudesse prover o que a família não provia, numa prática muito comum nas comunidades mais pobres do nosso Brasil.


Diga-se de passagem, Maria não aprendeu muita coisa na escola, pois sem comida no “bucho” nenhuma criança (e os adultos também) aprende qualquer coisa e a merenda...essa, só de vez em quando, quando o Prefeito queria aparecer, como ela própria concluía....então Maria não se espante que Maria, mesmo tendo a 4ª série seja mais um dos muitos analfabetos funcionais de quem tanto gostam de falar os estatistas em seus estudos...


Maria é mãe de sete filhos, o primeiro filho de “um gentil eletricista” que trocou a “inocência” da menina por algumas voltas de bicicleta... literalmente, afinal esse é o roteiro de um romance com ares de pedofilia.


Dele Maria ainda lembra com uma sombra de sorriso, não sei se pelas voltas de bicicleta ou pela "volta" que levou depois do eletricista bom de lábia, mas carinhoso, que diga-se de passagem, era casado e não assumiu o rebento.


Desse filho, Maria é formalmente irmã, já que a criança foi registrada pela avó e avô, numa forma comum de esconder a vergonha familiar.


Como forma de ganhar o sustento, aos 14, que poderiam ser 12, 13, 15...Maria foi morar numa “casa de família”, onde além dos serviços da casa em troca de poucos caraminguás, também serviu, à força, ao padrão, pai de seu segundo filho, até hoje registrado de "pai desconhecido" e motivação do fim da relação empregatícia, para não falar escravatícia...pois não há como não vislumbrar a identidade com“Casa Grande e Senzala” na estória de Maria...


Mas Maria queria vida melhor e foi embora para Espírito Santo...e de um Espírito Não Santo Capixaba mais duas Mariazinhas nasceram....e como uma corda de caragueijo seguiram para o Rio de Janeiro em busca de um destino melhor...do "Eldorado" dos nordestinos sonhadores....


Mas as estórias das Maria, parecem se repetir, o próximo encontro de Maria, que lhe rendeu mais um rebendo, também foi um encontro com as estatísticas que fizeram nascer a Lei “Maria da Penha” (mais uma Maria,) e nossa Maria, com os filhos nos braços fugiu das surras movidas à cachaça que tomava do novo companheiro...


Se alguém perdeu as contas, estamos no quinto filho de Maria...que como todo brasileiro...não desiste nunca...e Maria caiu nos braços de um “paraíba” conversador que sempre lhe trazia charque, farinha e dizia querer cuidar dela e da gurizada...não deu outra....mais dois filhos para Maria cuidar e menos um homem cuidando de Maria...


É, realmente eu confesso que cheguei a conclusão de que minha personagem de museu tem um “dedo podre” para homens, inclusive a aconselhei a se manter distante deles, haja vista a evidente falta de sorte e plena fertilidade dessa mulher, ainda bonita, mesmo depois de tantos baixos e mais baixos e mais baixos ainda na vida...


Mas não pensem que Maria não é uma mulher sábia, pois ela o é (menos para assuntos românticos, pois acredito que se topar com outros "Don Juans" teremos mais bebezinhos para aumentar a população de brasileiros no mundo...



Maria é uma mulher, que me orgulha de ser mulher, e que se orgulha de trazer o sustento dos filhos a partir de seu trabalho, que valoriza cada aprendizado da vida (refere-se à casa onde foi estuprada como o lugar onde aprendeu o ofício que lhe paga o salário hoje em dia), alguém que já rejeitou a ajuda assistencialista de uma igreja dizendo ao pastor “que ela queria aprender a pescar e não apenas ganhar a cesta básica” de todo mês, uma mulher guerreira que cria todos os filhos, não tendo nenhum deles desencaminhado e que mesmo após horas de trabalho, subindo e descendo escadas e compreendendo o incompreensível, como o pedido de novas toalhas das estudantes inglesas, ainda mantém um inalterável sorriso no rosto e a disposição para prosear enquanto lava a louça de nosso breakfast e para organizar uma sessão de estudo bíblico com outra crente à noite quando chega em casa do trabalho e fiscaliza a lição e a limpeza dos filhos....Um leoa, verdadeira guerreira..soldado numa guerra injusta, marcada pela corrupção que rouba o pão, leite, remédio e direito ao estudo dos mais pobres, pelo machismo que aceita o estupro e o que mais marcou pelo direito universal a uma infância feliz que foi arrancado das mãos dessa mulher e não há como ser devolvido hodiernamente.


Enquanto isso, enquanto eu lavo meus pratos e ela prepara o "mised eggs" dos garotos irlandeses, eu me quedo imaginando o que teria sido da estória dela se numa das esquinas do Rio, tivesse Maria topado com alguém da qualidade de Seu Milton em sua vida...

Nenhum comentário:

Postar um comentário