segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Vinho, caderneta e caneta

A despedida do Brasil tinha que ser em alto nível. Tinha que ser no Rio de Janeiro. Tinha que ser em Botafogo. Tinha que ter o Cristo. Era urgente a leveza carioca. E teve tudo isso.

Nesse dia que literalmente a “ficha cai”, as férias tupiniquins encerram e mostram que o grande passo está por vir. Você percebe que está dizendo adeus ao seu idioma, à patente de ser natural do País, nota que já não será tão fácil ver e falar com quem você gosta e que a decisão tomada está prestes à ser executada. Sensação de caminho sem volta.
Entrar em sabático não é tão fácil quando entrar de férias.
Sexta-feira melancólica, gosto amargo.
Eu gosto de amargo. Mas prefiro sweet sparkly.
A opção de leveza na vida feita há anos tem que prevalecer. Vale assisti à primeira sessão do “Os Normais 2”. Ir embora lembrando do quanto eu gosto de Rui e Vani. Comediazinha fácil num dia difícil. Boa escolha. Mais uma vez a pipoca sobrou, ficou literalmente pela metade, lembrando a companhia cotidiana daquele programa. Mais uma renúncia cujas consequências devem ser toleradas.
O ritual de despedir-se tem seu ponto máximo. Restaurante Tiramisu. Frente para o mar. Visão para o Pão de Açúcar. Lasanha de berinjela. Vinho australiano. Solidão.
A visão privilegiada transmutou-me contemplativa, talvez o vinho tenha ajudado. Minha companhia foi a caderneta e a caneta.
Caderneta e caneta não falam, não riem, não te pedem para ficar, nem falam que vão sentir falta de você.
Até te ouvem, mas sem contestar, não vêm deles o conselho ou a nota de apoio, nem tampouco o questionamento.
Mas é o que se tem: caderneta e caneta. Até aquele momento era o que eu pensava. Meu almoço com vista para o Pão de Açúcar, vinho e massa eram só para mim e minhas memórias of course.
Esforço hercúleo para ficar feliz, como se felicidade viesse à la carte.O vinho era amargo. A berinjela amargava.
O toque de doçura da refeição, veio do garçon, que, quem sabe compreendendo a qualidade dos pensamentos que vagavam naquela refeição e a importância da companhia da caderneta e caneta sempre parava, enchia o taça, oferecia azeite e o melhor: olhava nos olhos e sorria.

Sorria o sorriso daqueles que eu queria à mesa, mirava com a doçura de minha mãe, de meus amigos, dos alunos, compreendeu no silêncio, a importância daquela refeição, tanto que sempre encerrava suas intervenções, com um simpático: “não tenha pressa, aproveite a comida, a bebida, a paisagem e escreva muito”.
Sábio conselho. Não poderia dizer melhor.
O vinho começou a embriagar. O mundo gira. Nada vai ficar parado. Nem eu. “- A conta por favor!”
E aquela refeição encerrou com a conta paga, e à hora de ir embora, num súbito maravilhoso, daqueles que nos faz acreditar piamente na existência de Deus, um novo olhar, mais um sorriso e de brinde um grande abraço do garçon, que se despediu daquela desconhecida com o afeto que amenizou a dor da escolha de não ter de quem se despedir no dia da despedida. Deus existe.

(esse texto é dedicato especialmente aos "meus garçons")

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Meu nome é Jonhnny


À primeira vista parecia só mais um garoto. Talvez nem tivesse vivido tanto para ter muito o que contar. Ledo engano.

Na roda que se formou, o esperado era que fosse apenas mais um ouvinte e “rinte” e “perguntinte” quê necessariamente um falante...Ledo engano.

Claro que os experientes iriam dominar a conversa, pois tinham vivido mais, tido grandes aventuras, os maiores amores, eram senhores das grandes sagas, titulares de enormes aprendizados. Ledo engano.

Num giro; numa deixa para um comentário, o menino virou rapaz que virou homem e depois um velho...um sábio...e todos se calaram para ouvir o menino.

Estávamos conversando com Johnny. João Estrela. Igual àquele que inspirou o livro, e que depois virou filme estrelado por Selton Mello, mas que por sorte conseguiu virar sua estória antes dela virar contra ele. Santa paranóia. Bendita bad trip.

Contou-nos como é possível viver dez anos em um pela força da imaturidade da juventude e amadurecer esses mesmos dez anos em meses.

Ensinou-nos que o tempo é fugaz, que o menino pode ensinar ao velho, e que às vezes alguns males podem vir mesmo para o bem. Ensinou que os anjos podem se vestir até de doenças para nos proteger, e que suas asas algumas vezes podem ser “câmeras ocultas e agentes secretos” a nos vigiar, nos impedir o próximo passo...

De fato, a sabedoria do garoto, sua experiência de vida, e sua generosidade em compartilhar, além de tudo, foi um tapa na arrogância dos mais velhos para com os mais novos, sempre achando que têm muito a ensinar e muito pouco a aprender. Ledo engano.

Impressionou sua coragem, seu desprendimento, contou o que nem todos têm coragem para contar, se abriu perante estranhos, ousou ser ousado, e não se via de suas palavras a arrogância comum do adolescente, mas a maturidade do velho, ao reconhecer que viveu, errou e aprendeu.

Tanto aprendeu que sua guinada na vida foi literalmente de 180 graus....em todos os sentidos possíveis, inclusive territoriais.

Mais do quê aprendeu, nos ensinou. E muito.

E todos que o circundavam, inclusive eu, tornaram-se ouvintes, “rintes” e “perguntintes”...enfim tudo, menos falantes.
Ledo engano. Ainda bem.

Noites Tupiniquins



Começar um sabático nos inspira profundas modificações de vida, o que impõe outras muitas mudanças menores, mas não menos importantes...devemos aprender a sair de nossa rotina, abrir a mente para novos aprendizados, abrir o coração para novos encantamentos, enfim nos impor um outro ritmo de viver.

Ir ao Rio de Janeiro antes de dá um pulo para o outro lado do mundo me pareceu um jeito sábio da mudança não ser tão brusca. Lá outros idiomas são familiares, mas você vai ouvir e falar (na maioria das vezes) o português; você se sente meio que viajando dentro de sua casa e no meu caso, meio que arrodeando dentro um universo muito familiar: Bairro de Botafogo.

Eis um lugar único na Cidade Maravilhosa. Mistura aquele cheiro de cidade pequena, com casarões do tempo de império, muitos idosos andando para lá e para cá, cenário que nos é tão familiar, mesclando-se com a boemia da cidade grande, não é tão Copacabana, mas com a mesma inspiração, além do bônus de uma visão incrível para o Morro da Urca, doce como o açucar de seu pão.

Dentro dos casarões, dos botequins, dos salões de beleza de bairro, onde senhorinhas bem arrumadas contam com a maior facilidade suas estórias (tomara que o neto de Dona Lúcia esteja bem no papel que conseguiu em Malhação e que a amiga dela tenha conseguido alugar a quitenete), há um lugar em especial especial para se prestar atenção.

Por mais que eu tente fugir de lá, e eu não tento, sempre acabo por lá, tanto que a intimidade já derrubou algumas regras e hoje eu posso dizer que sou hóspede, amiga, visitante e quase-useful do hostel mais descolado da cidade, segundo palavras de um grande jornal, onde uma das coisas mais agradáveis de fazer é simplesmente não fazer nada e ver a vida passar deitada num puff, jogando conversa fora com todo tipo de gente que desembarca por lá, ainda mais quando por camaradagem (e um pouco de culpa por não terem perdido minha reserva) a gente ganha uma incrível caipirinha de lima, para acompanhar o papo, que só encerra quando o dia raia e já é hora de voltar para casa, fechar as malas e embarcar...para a nova casa...

Por lá, você pode explicar em inglês, que você entende o idioma de Sheakspeare, só não entende de música, daí porque não participa da conversa com o baterista inglês que veio fazer "não sei o quê" com Chico Buarque e outros músicos de renome e engrenou uma conversa com o mais carioca dos cariocas, que no passado também foi roqueiro, isso tudo ao som da música dos índios de parantins, of course...

Pode também descobri que suas raízes sempre estão perto, e que depois de sua vinda, outros tantos paraíbas por alí já chegaram e encantaram, tanto que hoje o forró é bem presente na trilha que envolve as cores e as sombras das noites tupiniquins.

É nessa hora que alguém chega a brilhante conclusão que os nordestinos são os únicos brasileiros que se identificam como conjunto e que podem até brigar entre si (que o digam as estórias envolvendos cearenses e pernambucanos que passaram por lá teimando em quem era melhor), mas basta alguém diminuir o brilhantismo do Rei do Baião ou falar que Carne Seca não é uma iguaria dos Deuses, que a defesa com sotaque arretado sempre toma a frente, fazendo honrar nossa região.

Foi por lá que perguntaram: Você já viu paulista defendendo carioca quando se fala algo do Sudeste? Ou alguém do Acre tomando as dores de um Amazonino? Mas se alguém falar do ceará ao paraibano, certamente o sentimento de conjunto nordestino aparece e algum argumento virá...

E para aprender isso, eu tive que sair do nordeste e me entrosar num ponto onde ser gringo é a regra: os hostais cariocas.

Nesse mesma noite, tentei acompanhar o passeio alcóolico de um figura incrível, um verdadeiro mineiro (de fato ele não é mineiro), mas tem todo jeito, daí porque o batizei como tal. Parece quieto, mas fala pelos cotovelos e todas as outras articulações do corpo e adora repetir o que fala.

Seu e-mail, por exemplo, eu acredito que todos os hóspedes da noite decoraram, mesmo dependendo de um processo mneumonico incrível; mas foi sua coragem para provar as invenções alcóolicas do akelá do hostel "assim Mozão não fica com tanta raiva, pois sair para beber cerveja é conduta grave, mas tomar uns drinks é chique", sendo um depois do outro, ou melhor, um com outro, e outro, foi a tônica da noite. Dali sairam causos incríveis de todos, pois quando ele se virou, todos estavam conversando com ele, inclusive os ingleses, sem entender uma palavra de português e ele sem entender uma de inglês, mas se comunicaram e o riso saiu frouxo dos rostos de todos...

Somente uma figura do naipe de Rodolpo, para convencer Mozão, que depois de ter sido expulso de casa e caído de paraquedas nos aconchego tupiniquim, que eles deveriam voltar, mas que ele precisava passar mais uns dias (além dos outros 15 que já havia passado morando e tomando toda a cerveja de lá) para se recuperar do trauma e retomar a relação, posto que evidentemente se amavam...só depois de tomar mais uma caipirinha de lima e outro "sei lá o quê com vodka", para compreender a perfeita junção dos pensamentos do mineiro... Mas infelizmente a bebida não era tão forte e eu não consegui absorver a perfeição de seu argumento...mas o e-mail dele eu não esqueci...rmz963..@algumacoisa.com.br...até porque como ele mesmo me explicou: é muito lógico e fácil de lembrar...

Por fim, a noite, minha última noite no Brasil, se encerra, graças a Deus sem ressaca, mas cheia de grandes lembranças, das muitas vezes que voltei aquele lugar e na certeza que da próxima vez, minha reserva será mantida...até porque sempre é bom rever a galeria de fotos do Rio antigo montadas sob um véu de luz negra, recanto que sempre é objeto de eterno convite a um breve retorno...

domingo, 6 de setembro de 2009

Mais figuras do museu: lavando louça com Maria

O Rio de Janeiro continua lindo...e creio que sempre continuará assim...pois ano a ano continua despertando nas pessoas uma sensação de felicidade única.


Quem quer só trabalhar e fazer dinheiro sonha com São Paulo, e entendam, que eu nada tenho contra a Paulicéia Desvairada, terra onde nasci e que eu também adoro, mas quem além de tudo isso ainda acha que a felicidade pode está entre um chope e outro no botequim “pé sujo” da esquina vai para o Rio de Janeiro.


Exatamente por constar no ideario popular como lugar de oportunidades (apesar das estatísticas mostrarem o contrário) o Rio é colocado como um dos “Eldorado” do país. A Cidade Maravilhosa ainda atrai uma multidão para lá viver e sobreviver, que junto com os “Cariocas da Gema” formam um todo indescritivelmente interessante, cheio de figuras merecedoras de constar do meu “Museu de Gente”.


E nessa deliciosa confusão de figuras humanas incríveis você pode se deparar com encaixes perfeitos nas esquinas mais inusitadas, como Maria e Seu Milton...que sequer se conhecem, mas que certamente mereceriam algumas horas num botequim, numa lanchonete ou num ponto de ônibus para conversarem...


Maria, que poderia se chamar Josefa, Sebastiana, Raimunda, Das Dores é mais uma das tantas nordestinas residentes no Rio de Janeiro, que confirmam as estatísticas do quando é difícil a vida das mulheres pobres do nosso País.


Ainda bem que Maria hoje está bem, à vista dela, e isso é o que verdadeiramente importa. Ela está muitíssimo bem, e em meio aos gringos, sem falar uma palavra em inglês ou espanhol, ela se comunica como ninguém, servindo o café da manhã e a fazendo a limpeza do hostal onde me hospedei, sempre com um sorriso no rosto, que não sei se é uma inata simpatia ou o jeito que ela criou para se comunicar em inglês, espanhol, japonês, hebraico....afinal carisma é uma linguagem universal que conecta todos os seres humanos, dignos de serem chamados de humanos.


Pois bem, Maria é mais uma Maria, filha e neta de outra Maria, e também mãe de outras Marias que também poderiam ser Josefas, Sebastianas, Raimundas ou qualquer outro nome comum no interior do nordeste.


Sua mãe teve uma "ruma" de filhos, criados feito “rama de batata”, estudou apenas até a 4ª série, pois o sustento que o pai trazia para casa cortando lenha para vender mal dava para comprar o pão de todo dia...na verdade não dava....daí porque alguns irmãos de Maria, bem como uma filha dela própria foram distribuídos por sua mãe a quem pudesse prover o que a família não provia, numa prática muito comum nas comunidades mais pobres do nosso Brasil.


Diga-se de passagem, Maria não aprendeu muita coisa na escola, pois sem comida no “bucho” nenhuma criança (e os adultos também) aprende qualquer coisa e a merenda...essa, só de vez em quando, quando o Prefeito queria aparecer, como ela própria concluía....então Maria não se espante que Maria, mesmo tendo a 4ª série seja mais um dos muitos analfabetos funcionais de quem tanto gostam de falar os estatistas em seus estudos...


Maria é mãe de sete filhos, o primeiro filho de “um gentil eletricista” que trocou a “inocência” da menina por algumas voltas de bicicleta... literalmente, afinal esse é o roteiro de um romance com ares de pedofilia.


Dele Maria ainda lembra com uma sombra de sorriso, não sei se pelas voltas de bicicleta ou pela "volta" que levou depois do eletricista bom de lábia, mas carinhoso, que diga-se de passagem, era casado e não assumiu o rebento.


Desse filho, Maria é formalmente irmã, já que a criança foi registrada pela avó e avô, numa forma comum de esconder a vergonha familiar.


Como forma de ganhar o sustento, aos 14, que poderiam ser 12, 13, 15...Maria foi morar numa “casa de família”, onde além dos serviços da casa em troca de poucos caraminguás, também serviu, à força, ao padrão, pai de seu segundo filho, até hoje registrado de "pai desconhecido" e motivação do fim da relação empregatícia, para não falar escravatícia...pois não há como não vislumbrar a identidade com“Casa Grande e Senzala” na estória de Maria...


Mas Maria queria vida melhor e foi embora para Espírito Santo...e de um Espírito Não Santo Capixaba mais duas Mariazinhas nasceram....e como uma corda de caragueijo seguiram para o Rio de Janeiro em busca de um destino melhor...do "Eldorado" dos nordestinos sonhadores....


Mas as estórias das Maria, parecem se repetir, o próximo encontro de Maria, que lhe rendeu mais um rebendo, também foi um encontro com as estatísticas que fizeram nascer a Lei “Maria da Penha” (mais uma Maria,) e nossa Maria, com os filhos nos braços fugiu das surras movidas à cachaça que tomava do novo companheiro...


Se alguém perdeu as contas, estamos no quinto filho de Maria...que como todo brasileiro...não desiste nunca...e Maria caiu nos braços de um “paraíba” conversador que sempre lhe trazia charque, farinha e dizia querer cuidar dela e da gurizada...não deu outra....mais dois filhos para Maria cuidar e menos um homem cuidando de Maria...


É, realmente eu confesso que cheguei a conclusão de que minha personagem de museu tem um “dedo podre” para homens, inclusive a aconselhei a se manter distante deles, haja vista a evidente falta de sorte e plena fertilidade dessa mulher, ainda bonita, mesmo depois de tantos baixos e mais baixos e mais baixos ainda na vida...


Mas não pensem que Maria não é uma mulher sábia, pois ela o é (menos para assuntos românticos, pois acredito que se topar com outros "Don Juans" teremos mais bebezinhos para aumentar a população de brasileiros no mundo...



Maria é uma mulher, que me orgulha de ser mulher, e que se orgulha de trazer o sustento dos filhos a partir de seu trabalho, que valoriza cada aprendizado da vida (refere-se à casa onde foi estuprada como o lugar onde aprendeu o ofício que lhe paga o salário hoje em dia), alguém que já rejeitou a ajuda assistencialista de uma igreja dizendo ao pastor “que ela queria aprender a pescar e não apenas ganhar a cesta básica” de todo mês, uma mulher guerreira que cria todos os filhos, não tendo nenhum deles desencaminhado e que mesmo após horas de trabalho, subindo e descendo escadas e compreendendo o incompreensível, como o pedido de novas toalhas das estudantes inglesas, ainda mantém um inalterável sorriso no rosto e a disposição para prosear enquanto lava a louça de nosso breakfast e para organizar uma sessão de estudo bíblico com outra crente à noite quando chega em casa do trabalho e fiscaliza a lição e a limpeza dos filhos....Um leoa, verdadeira guerreira..soldado numa guerra injusta, marcada pela corrupção que rouba o pão, leite, remédio e direito ao estudo dos mais pobres, pelo machismo que aceita o estupro e o que mais marcou pelo direito universal a uma infância feliz que foi arrancado das mãos dessa mulher e não há como ser devolvido hodiernamente.


Enquanto isso, enquanto eu lavo meus pratos e ela prepara o "mised eggs" dos garotos irlandeses, eu me quedo imaginando o que teria sido da estória dela se numa das esquinas do Rio, tivesse Maria topado com alguém da qualidade de Seu Milton em sua vida...